Após análise de dados provenientes de aplicativos da PlayStore e sites do Google sobre “Teatro metalinguístico digital para crianças”, alguns dados continuaram me chamando atenção especial para estudo:
- A ausência de aplicativos e sites que intencionalmente proporcionassem uma vivência teatral digital para crianças, e como essa se daria.
- A presença de sites e aplicativos que se diziam especificamente para meninas ou meninos, como resposta às buscas realizadas.
*As análises de dados podem ser vistas no site deste blog, para acessar clique aqui.
Diante disso fiz uma busca de materiais que pudessem me trazer novas informações acerca dos temas levantados. Escrevo aqui alguns pensamentos sobre o que julguei ser possível aproveitar entre os materiais levantados:
COMUNICAÇÃO POÉTICA NO ESPAÇO DIGITAL, APROXIMAÇÕES COM O TEATRO
Dissertação de Mestrado de Ricardo Augusto Pereira
PEREIRA, Ricardo Augusto. Comunicação poética no espaço digital aproximações com o teatro. Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2012.
O autor faz uma comparação entre o palco italiano para o teatro e a internet para nossa vida. Em determinada época a estrutura do palco italiano era considerada inerente ao fazer teatral, tanto quanto a internet é hoje quase inerente à nossa vida. Precisamos fazê-la funcionar a nossa favor, como Brecht fez o teatro italiano funcionar como crítica dele mesmo.
Ao escrever a respeito do espaço da ação teatral, Brecht propõe modificações técnicas na construção do espaço ideal para a realização do teatro, seria uma arquitetura polivalente, suscetível de infinitas modificações. Embora possamos pensar tecnicamente em novas formas de construir o espaço digital, o uso do ambiente atual, com suas limitações e ideologias, carrega possibilidades de novos usos e significações. Parafraseando Brecht: não é a mídia que transforma a sociedade é o usuário; o espaço digital não pode ser visto como um fator limitante, deve permitir a comunicação. Ele é um espaço em construção, o modo como ele será construído é o modo como nos relacionamos com ele. (PEREIRA. 2012, p. 58).
Daí a necessidade da arte/educação digital crítica.
A realidade da comunicação contemporânea exige que os sujeitos saibam lidar com uma imensa gama de informação em sua vida cotidiana e saibam se adequar constantemente a novas plataformas dentro do espaço digital. Para se subverter o espaço digital, é necessário lidar com o impacto desse fluxo acelerado de informações e, principalmente, com as novas plataformas e ambientes virtuais, ou seja, interpretá-los e integrando-os na nossa vida cotidiana e em nossa dimensão ética [visão do mundo]; isso parece ser uma tarefa inevitável dos sujeitos modernos. (PEREIRA. 2012, p. 59).
Ricardo Augusto Pereira define duas formas de teatro digital:
- Peça gravada exibida ao vivo no ambiente digital;
- Teatro em rede digital: em que há interação entre atores e apreciadores por meio das tecnologias de mídia digitais.
A tecnologia digital torna possível transcender a limitação da presença do corpo físico, assim a performance art, ou a performance social, habita um novo espaço que traz a materialidade da performance imediata sem a “limitação” da presença física, mas com todas as sutilezas possibilitadas na comunicação corporal, além da icônica. (PEREIRA. 2012, p. 64).
Entretanto ambas as definições se referem a espetáculos digitais efêmeros, e nenhum dos grupos mencionados trabalha com o público da primeira infância. O que mais tem se aproximado da experiência teatral para a infância no meio virtual, tem sido os aplicativos de jogos em que o jogador assume um personagem para realizar ações predefinidas pelas regras e possibilidades do jogo.
Em seguida disserta sobre as possibilidades da divulgação teatral no meio digital.
PRESS START: AULA DE TEATRO COMO JOGO DIGITAL
Monografia de Marcelo Fantin Niemxeski
NIEMXESKI ,Marcelo Fantin. Press start: Aula de teatro como jogo digital. Monografia (gradução) – Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul. Porto Alegre, 2015.
A secção “Os jogos digitais na educação” começa se referindo à diferença entre jogos digitais na educação de jogos educativos: para alguns autores não há diferença entre jogar e aprender.
O termo “jogo educativo” não faz sentido para mim e nem para J.P Gee, que, na prática, não faz distinção real entre aprender e jogar. Quando se está jogando, está se aprendendo. Quando o jogo é denominado educativo, pressupõem que seu propósito seja ensinar especificamente algo e a imersão lúdica que conduziria o estudante se perde, e com isso todo o potencial do aprendizado através do jogo. (NIEMSESKI. 2015, p. 28)
Alguns dos sites encontrados na primeira análise de dados sobre conteúdos para a primeira infância, se descreviam como “jogos educativos”, mas tinham como principal intuito instruir a criança ao uso técnico do computador, e não de promover uma aprendizagem crítica sobre as imagens digitais.
A maioria dos jogos educativos tentam dar uma roupagem lúdica para um mecanismo muito parecido com o de exposição de conceitos e questionamentos vistos nos livros didáticos. Quando um jogo realmente é um bom jogo educativo, normalmente apenas o denominamos como um bom jogo, pois bons jogos apresentam boas mecânicas de aprendizagem. (NIEMSESKI. 2015, p. 28)
O autor enaltece a necessidade do professor conhecer as tecnologias digitais, e das dificuldades já conhecidas de acesso nas escolas a estas tecnologias.
“CALEIDOSCÓPIO DIGITAL” CONTRIBUIÇÕES E RENOVAÇÕES DAS TECNOLOGIAS DA IMAGEM NA CENA CONTEMPORÂNEA
Tese de Doutorado de Marcelo Denny Toledo Leite
LEITE, Marcelo Denny de Toledo. “CALEIDOSCÓPIO DIGITAL” Contribuições e renovações das tecnologias da imagem na cena contemporânea. Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo, 2011.
Estamos nos tornando ciborgues digitais, pois algumas vezes os jogos e vivências digitais aumentam nossas possibilidades corporais, bem como formas de apreciar e fazer arte. Quando assumimos um personagem digital que realiza ações, estamos nos apropriando de um outro corpo, mesclando-o à nossa identidade cultural digital. Nós “habitamos virtualmente um corpo” outro (LEITE. 2011, p. 93).
O teatro tradicional muitas vezes se mostra “santificado”, que não deve ser imaculado com conteúdos digitais, e portanto resiste a essa influência. Porém a reprodutibilidade, a interatividade, possibilidade de amplo acesso da arte digital democratizam o acesso, andando na contramão da arte elitizada.
(…) mesmo quando falamos do corpo e da sua hibridização, ou interação com a máquina, encontramos o vínculo entre o socius e a subjetividade, agora sob a forma de um corpo partilhado a distância. Desta maneira, consideramos que as metamorfoses sofridas pelo corpo, seja através do objeto artístico ou ainda pauta das experiências tecnológicas estão, antes de mais nada, imbricadas em estratos sócio-culturais, códigos culturais e fluxos de espaço- tempo que além de modelizar o corpo metamodelizam a subjetividade contemporânea. (LEITE. 2011, p. 129)
As noções de corpo e as relações com o corpo se ampliam com as possibilidades tecnológicas. Por exemplo, na minha poiéses teatral digital, o meu corpo torna-se outros corpos por meio da sobreposição de imagens digitais. A performance se configura apenas em uma presença física virtual, visto que fora desse ambiente o corpo que teatraliza a mensagem não seria mais perpassado pelas imagens que passaram a fazem parte dele.
Os efeitos da virtualidade aplicados na cena teatral possibilitam que a realidade física seja ampliada. Na sobreposição de imagens e vídeos no palco, em relação dialética com a dramatização dos atores e outros elementos de cena, é possível fazer surgir novas espacialidades. Ao uso das tecnologias digitais dialeticamente no teatro, da-se o nome de teatro expandido.
Na minha performance digital trabalho com a sobreposição de imagens. Sobre isso Marcelo Denny diz:
As imagens tecnológicas podem ampliar as relacões sígnicas da cena, com o uso de estranhamento, onde o que se mostra nas imagens aparentemente não dialoga com o que os atuantes fazem em cena. Esse efeito de sobreposicão ou de justaposição, de estranhamento, pode ser de grande valia para resultados dialéticos ou quando apontam para resultados mais abertos e subjetivos. (LEITE. 2011, p. 191)
As possibilidades virtuais podem abrir também janelas temporais nas cenas teatrais:
Os recursos das imagens tecnológicas podem resgatar e, ao mesmo tempo, dialogar com atuantes que também se posicionam em tempos cênicos diferentes, criando ambiguidades e ambientes fugidios de percepção temporal. (LEITE. 2011, p. 192)
A CRIANÇA NA CONSTRUÇÃO DE SUA IDENTIDADE DE GÊNERO PELAS PRÁTICAS SIGNIFICATIVAS DO DISCURSO E LINGUAGEM
Artigo de Ivone Maria Battistela
BATTISTELA, Ivone Maria Battistela. A criança na construção de sua identidade de gênero pelas práticas significativas do discurso e linguagem. Disponível em: <http://e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/3389>. Acesso em: 15 ago. 2017.
Neste artigo a Ms. Ivon Battistela discursa sobre como a linguagem é um fator determinante na construção de significados e identidades, e como ela pode classificar e até marginalizar sujeitos. Que práticas e que sujeitos estão sendo marginalizados e classificados nos jogos digitais disponíveis para crianças pequenas?
Como um ser histórico-social, a criança adquire consciência da sua identidade de gênero a partir dos modelos culturais do meio em que participa.
Através da experiência e de acordo com o desenvolvimento cognitivo, a criança gradualmente constrói a concepção ou um conjunto de concepções sobre o gênero (PIDGEON,1993). Com a idade de três anos já tem a noção de gênero extraída da aparência física e da visão binária de feminino e masculino, e também é capaz de identificar-se com personagens representados em figuras (MARTIN2004). Ela constrói a noção de gênero através de símbolos visuais representados na roupa, no estilo de cabelo e nas cores. O vestuário, o cabelo e as cores são signos visuais constituídos de significados que dão a criança os meios para identificar as diferenças entre o gênero feminino e masculino. (BATTISTELA, 2015. p. 4)
Alguns dos jogos elencados na análise de dados presentes nesta pesquisa apresentam signos que enfatizam não só a separação binária de gêneros, como apresenta discursos de práticas específicas para cada um destes gêneros.
O documentário “Raised without Gender” mostra uma família na Suécia que cria seus filhos de forma agênera. As crianças são estimuladas a realizar brincadeiras e escolhas estéticas críticas pautadas em seus desejos e gostos, ao invés de serem guiadas por padrões de comportamento e vestuário binários.
Criadas dentro de um contexto cultural que não enfatiza a dicotomia presente nos principais jogos encontrados no aplicativo Playstore ou nos primeiros links do Google, a questão: “É menino ou é menina?” é irrelevante no cotidiano destas crianças, visto que para elas isso não faz diferença no tratamento ou nas relações que estabelecem consigo mesmas e com outras.
A autora também levanta uma conceituação importante das diferenças entre sexo e gênero. Sexo é uma determinação biológica, enquanto gênero é uma questão cultural. Uma pessoa pode nascer com a anatomia do sistema reprodutivo de uma mulher, porém se reconhecer por uma identidade de gênero masculina, por exemplo. A grande questão é: Que práticas e comportamentos sociais definem os gêneros, e por quê? Que relações de poder estão intrínsecas a estes conceitos?
A nossa educação considera a pluralidade de gêneros existentes como iguais em direitos e deveres?
“FACA SEM PONTA GALINHA SEM PÉ”
Livro de Ruth Rocha
ROCHA, Ruth. Faca sem ponta, galinha sem pé. Editora Ática. 1998. Disponível em: <https://pt.slideshare.net/lisianezimmermann9/faca-sem-ponta-galinha-sem-p-ruth-rocha- 26114633>. Acesso em: 15 ago. 2017.
O livro de Ruth Rocha conta a história de Joana e Pedro, dois irmãos que foram contaminados pelas classificações sexistas de comportamento do gênero feminino e masculino, crenças estas que são desconstruídas ao desenrolar da narrativa quando os dois trocam de corpos, porém prosseguem com os mesmos desejos e comportamentos.
Destaco esta história, e o curta-metragem homônimo produzido a partir dela, por trazerem estas questões colocadas na performance por meio da literatura e na dramatização para cinema, transmitindo essas reflexões e questionamentos por meio da arte.