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A arte é um componente fundamental para se compreender a cultura, visto que opera no campo estético, sensível humano, (re)significando o social. Pensar em arte e cultura implica diretamente em pensar o conceito de “representação”, analisado por autores como Sandra Pesavento sob a ótica da história cultural.
A História Cultural é um campo de registro historiográfico que parte do pressuposto de que o ser humano, enquanto ser essencialmente social, é permeado pela cultura, que é constituída por representações da realidade. Ampliando a compreensão sobre o “real”, percebe-se sua multiplicidade, que depende sempre do imaginário social acerca do real. A representação, segundo Sandra Pesavento, significa:
[…] estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência. A ideia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma ausência e torna sensível a presença” (PESAVENTO, 2005 p. 21).
Nesta ótica, a representação é um signo que tenta personificar algo ausente, porém não tem caráter mimético, visto que não torna o real presente, mas promove uma imagem que o substitui e o significa.
A representação é uma construção que faz parte do imaginário social, e é definida dentro de um contexto e de signos a serem interpretados. A representação se refere ao real, mas jamais o será exatamente, pois ao falarmos a palavra “cadeira”, por exemplo, o ato da fala por mais performativo (Austin) que possa ser, não torna a cadeira real, mas levanta a imagem, a ideia sensível do que é uma cadeira. O termo “cadeira” representa diferentes objetos dependendo do contexto histórico cultural.
Por exemplo na clássica e subversiva obra “Fonte” (1917) de Marcel Duchamp, exposta no museu ‘Musèe Maillol’ em Paris, na França (imagem ao lado). Duchamp brinca com a representação social vigente de “artista” e “obra de arte”, e também com a representação social do mictório, enquanto lugar em que se faz xixi, mas também enquanto signo artístico. O artista joga com as representações dominantes para fazer uma crítica e resignificar esses conceitos. Quem é versado em arte pós-moderna pode compreender aquela representação enquanto obra de arte, outros podem não ver da mesma maneira.
A história cultural estuda as representações sociais do mundo ao longo do tempo, representações estas que se expressam nas normas, ritos, imagens, discursos, instituições, e obras de arte de determinado contexto, assim como a obra de Duchamp. Eis que a representação não é apenas uma substituição mimética do real, mas é uma elaboração feita a partir da realidade, e que permeia o reconhecimento e a legitimidade social.
A representação é carregada de sentidos simbólicos, que necessitam de contextualização e conhecimento dos códigos sociais para ser compreendida. A performance, a arte são também representação da realidade, por meio de imagens, sons, etc., que transmite sentimentos e ideias a quem for versado em seus códigos de interpretação intrínsecos.
Neste viés a história é permeada pelo imaginário, ideia contraposta por muito tempo devido ao racionalismo cartesiano que cindia o real do imaginário. A história cultural demonstra que nossa percepção de mundo, e o registro historiográfico se pauta em representações que compõe o imaginário de uma época. O imaginário é “um sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo” (PESAVENTO, 2005, p. 23).
Se a percepção de mundo depende das representações que formam o imaginário social, a nossa apreciação de obras de arte e criação estética está umbilicalmente ligada à este imaginário.
O que nos leva a questionar: como se da a construção das representações do real e determinam o imaginário social?
O imaginário social se performatiza na cultura por meio de códigos de significação, por meio principalmente da linguagem. Tomaz Tadeu e Silva fala sobre a relação entre a linguagem e a dominação cultural, devido ao poder performativo da língua.
A linguagem é capaz de fazer com que coisas aconteçam pela simples proclamação, ou pela repetição. Por exemplo, quando um padre diz “vos declaro marido e mulher”, por meio desta frase se performatiza um casamento. Quando uma criança nasce e dizemos “é menina!”, esta pode parecer apenas uma frase descritiva, porém, a sua repetição dentro de um contexto social machista adquire o poder performativo de instituir ações e comportamentos característicos do que convencionalmente se entende como comportamentos femininos, por exemplo utilizar a cor rosa e ser doce. Determina-se pela linguagem, grávida das representações sociais, identidades e diferenças.
As identidades fazem parte do imaginário social, são construídas socialmente porque dependem do outro, do diferente para se constituírem como tais. Eu afirmo que sou algo, porque vejo socialmente o que não sou, então identidade e diferença são conceitos interdependentes.
A identidade e diferença se performatizam pela linguagem, e por isso refletem e se baseiam em relações de poder que dominam a construção das representações. Dizer “quem é” e “quem não é” impõe classificar, hierarquizar, incluir e excluir, e quem faz estas classificações tem também o poder de atribuir diferentes valores aos grupos sociais.
A arte parte do imaginário para criar o objeto artístico, tornando latentes as representações em determinado contexto. A arte, neste sentido, tem o poder de questionar as representações sociais de poder, e as dicotomias que circundam as representações de identidade e diferença.
A arte se utiliza das representações sociais vigentes para criticá-las por meio dos códigos estéticos. Michel Certeau fala sobre os usos e consumos dos bens de consumo (1998, p.39 e p.95), que disseminam representações sociais dominantes sobre os dominados, mas que, uma vez disseminadas, tais representações também são passíveis de transformação pela grande massa marginalizada. Ele cita o caso da colonização espanhola dos indígenas latino americanos, em que os indígenas metaforizavam a ordem dominante espanhola nas suas ações cotidianas.
Um grande exemplo deste fato são as pinturas católicas dos índios do império tahuantinsuyo após a conversão à religião católica, que demonstram o hibridismo entre a religião cristã e as consideradas pagãs. O quadro abaixo representa a última ceia de Jesus e seus apóstolos, atualmente exposto na Catedral Basílica da Virgem da Assunção em Cusco, no Peru:
O quadro apresenta o Cuy, animal andino enquanto prato principal do jantar, e mostra Judas, vestido de vermelho olhando em direção aos apreciadores da obra, com traços físicos de o Francisco Pizarro, espanhol responsável pelo massacre dos incas. Por meio da arte foi realizada uma crítica à dominação do povo, jogando com as representações sociais religiosas.
Tomaz Silva nos adverte que:
A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes. (p. 3)
E, enquanto professores de arte é importante nos conscientizarmos das representações dominantes do contexto social em que vivem nossos estudantes, para que se tornem críticos das mesmas e possam questioná-los por meio da arte, como escreve Silva:
A pedagogia e o currículo deveriam ser capazes de oferecer oportunidades para que as crianças e os/as jovens desenvolvessem capacidades de crítica e questionamento dos sistemas e das formas dominantes de representação da identidade e da diferença. (p. 6)
REFERÊNCIAS:
CERTEAU, Michel: A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008. A produção social da identidade e da diferença. In: Identidade e diferença. Organizado por Tomaz Tadeu da Silva. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000 p. 73-102. MAKOWIECKY, Sandra. Representação: a palavra, a idéia, a coisa. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. No 57 – Dez. 2003.
NEXO JORNAL LTDA. A ‘Fonte’ de Duchamp faz cem anos. Qual foi o impacto (e o legado) do mictório como obra de arte. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2018.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 3ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 132p.