Paulo Freire e a Pedagogia do Oprimido

A educação brasileira está passando por novas fases de opressão. A falta de instituições escolares que atendam à todos os cidadãos, o surgimento das Organizações Sociais que assumem a responsabilidade sobre o ensino básico, militarização das escolas – que dentre outras atrocidades tem contribuído para a privatização do direito da educação, a desvalorização dos educadores e assim da própria educação, diminuição dos recursos para formação continuada nas universidades federais, popularização das categorias “professor-horista” ou “professor-bolsista”, dentre tantas mais, demonstram a urgência de refletirmos acerca da educação.

 

Este tema remete à várias fontes bibliográficas e práticas, porém ao trazermos esta discussão dentro do contexto brasileiro faz-se mister falarmos do filósofo, educador e pedagogo pernambucano Paulo Reglus Neves Freire, devido à sua incomensurável contribuição teórica e prática para a educação mundial, mas principalmente brasileira.

 

Educação brasileira crítica, importante frisar. Educação como um ato de amor, de respeito, de práxis crítica: de reflexão e ação consciente – visto que a primeira não se dá completamente se não acompanhada da segunda pois “conhecer é inferir na realidade conhecida” (FREIRE, 1967 p. 112) – dialética, educação como prática para a liberdade.

 

O contexto opressor que assola a história brasileira desde a invasão europeia aos territórios denominados Américas, perdura até os dias atuais atingindo todas as esferas sociais e mantendo a dicotomia entre opressores e oprimidos, ricos e pobres, designados como “cultos” e “incultos”, transformando os primeiros em sujeitos dignos de todos os privilégios, e coisificando os segundos para que prossigam sustentando anestesiados esta realidade, e assim, diminuídos, perdem sua consciência, sua voz, seu poder de reflexão e ação livre, isto é, perdem sua humanidade. A educação como prática da liberdade é, portanto, uma pedagogia voltada para o oprimido, em prol de sua dignidade enquanto sujeito histórico-cultural.

 

Neste viés a pedagogia do oprimido se estabelece em comunidade, em círculos de cultura ao invés de instituições fechadas como tem sido as escolas, e coordenados por um orientador que não tem a função de um professor tradicional, único detentor de conhecimento, mas composta por educadores-educandos, e educandos-educadores, pois a educação, segundo Paulo Freire, é troca, não há saberes superiores, não há apenas um sujeito que sabe e que deposita seu conhecimento sobre outro ignorante, como acontece na educação bancária:

 

Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar convencidos de que a sua visão do mundo, que se manifesta nas várias formas de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui. A ação educativa e política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob pena de se fazer “bancaria” ou de pregar no deserto. (FREIRE, 2013, p. 121)

 

Quem melhor que o oprimido para compreender a situação de opressão e se levantar em prol da sua liberdade enquanto sujeito social?

 

Deste modo, a pedagogia do oprimido deve ser realizada com ele, e não para ele, assumindo desde o princípio da práxis pedagógica uma postura de diálogo que reconheça e o ajude a reconquistar sua humanidade que lhe é direito. Como escreve Paulo Freire:

“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”, pois “ a ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, ‘ação cultural’ para a liberdade, por isto mesmo, ação com eles.” (2013, p. 71 e p. 73).

Para que os oprimidos possam lutar em prol de sua liberdade, que também implica na liberdade dos opressores, que não são livres ao desumanizarem terceiros, é imperativo que se conscientizem do contexto de opressão, e esta conscientização só pode se dar por meio da educação crítica.

 

A educação crítica como prática da liberdade proposta por Paulo Freire se baseia no temas-geradores. Fruto de seu trabalho de alfabetização crítica de adultos em várias regiões do Brasil e outros países da América Latina, os temas-geradores são questões que compõe o conteúdo programático da educação, elencados do contexto sócio cultural do educando-educador, temas estes que podem ascender reflexões críticas se problematizados pelo coordenador.

 

A investigação dos temas-geradores ocorre juntamente à comunidade em que se desenvolve a ação cultural educativa transformadora, em estudo coletivo de suas performances culturais, seus comportamentos, suas falas, trabalho, diversão, etc., como escreve Freire:

O que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem peças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão do mundo, em que se encontram envolvidos seus “temas geradores” (2013, p. 122).

Após esta investigação temática, são realizadas discussões com todos os envolvidos no processo educativo na sistematização deste conteúdo programático a partir dos interesses dos educandos-educadores, que são codificados e levantados por meio, por exemplo, das linguagens artísticas (fotografias, desenhos, dramatizações, etc.) para problematização nos círculos de cultura. O educando-educador afetado pela arte, é desafiado a questionar sua própria realidade, conscientizando-se e transformando a cultura:

A cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como o resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações. A dimensão humanista da cultura. A cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Como uma incorporação, por isso crítica e criadora, e não como uma justaposição de informes ou prescrições “doadas”. (FREIRE, 1967 p. 108)

Neste viés, cultura é toda criação humana. Ser crítico é “se descobrir como fazedor desse mundo da cultura” (FREIRE, 1967, p. 108).

 

Quando demonstramos que a cultura é o meio de aquisição da experiência humana, e que a cultura são todas as criações humanas, que possuem códigos que precisam ser decifrados dentro de cada contexto para que sejam compreendidos, demonstramos ao educando que precisa se apropriar destes códigos para se apropriar da cultura, e assim da sua própria existência.

 

Acerca da criticidade do sujeito, o autor faz uma análise dos graus de compreensão da realidade que precisam ser reconhecidos durante o processo educativo, para que se possa atuar juntamente com os educandos-educadores em prol do desenvolvimento de sua consciência.

 

Inicialmente Freire apresenta a “intrasintividade da consciência”, característica de sociedades “fechadas”, mais frequentemente em regiões rurais. As pessoas de consciência intransitiva se interessam basicamente por questões relacionadas ao ser biológico e ao suprimento de suas necessidades vitais de sobrevivência. Não há percepção histórica, e sua visão de mundo está restrita a um estado mais vegetativo da vida.

 

Escapa ao homem intransitivamente consciente a apreensão de problemas que se situam além de sua esfera biologicamente vital. Daí implicar numa incapacidade de captação de grande número de questões que são suscitadas. […] O homem, qualquer que seja o seu estado, é um ser aberto. O que pretendemos significar com a consciência “intransitiva” é a limitação de sua esfera de apreensão. (1967, p. 58)

 

Com o desenvolvimento econômico da sociedade e a ampliação de relações trazidas pela “vida moderna”, automaticamente a consciência se “transitiva”, primeiramente de maneira “ingênua”. Com a consciência “transitiva ingênua” os interesses e preocupações vão além da esfera vital, as relações com outros seres humanos e com um meio mais complexificado se ampliam, o ser começa a se historicizar, mas ainda não questiona, não investiga, não aprofunda a visão que foi ampliada.

 

Por meio de uma educação crítica que desenvolve a capacidade de percepção da presença do ser humano no mundo e das possibilidades de atuação em seu contexto histórico-cultural, este poderá desenvolver sua consciência transitiva ingênua para “transitiva crítica”, tornando-se um cidadão democrático e, portanto, dialético, responsável e investigativo.

 

A transitividade crítica por outro lado, a que chegaríamos com uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de explicações mágicas por princípios causais. Por procurar testar os “achados” e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência da responsabilidade. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo e pela não-recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre a argüições. (FREIRE, 1967, p. 58)

 

Nevrálgico se faz compreendermos o contexto e o nível de consciência dos educandos-educadores com a qual, enquanto educadores-educandos estamos trabalhando.

 

Quanto mais significativa for a experiência que nós, educadores, promovermos juntamente aos educandos, maior será o nível de aprendizado, pois que estaremos contribuindo para o desenvolvimento de consciências “transitivas críticas”, capazes de fruírem experiências mais complexas, e atuarem no mundo mais criticamente. Quando lhe é dado maneiras de conscientizar-se de seus próprios problemas, o sujeito assume responsabilidade pelas suas ações, e as implicações diante dos problemas que tem e reconhece.

 

Uma sociedade em trânsito, em que os antigos valores não servem mais ao tempo histórico vivido, pode ser levada a elevar-se a “sociedade aberta”, democrática, por meio da educação crítica consciente do dinamismo do período de transição, ou promover seres humanos objetificados e acomodados por meio da educação bancária

 

Toda ação, é uma ação cultural, é um ato educativo. A atitude crítica é a única coisa que impede o homem de coisificar-se, domesticar-se, acomodar-se. Cabe a nós, educadores-educandos ou professores refletirmos: Estamos educando para a domesticação e alienação, ou para a liberdade?

 

 

 

Referências

 

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 23 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. ______. Pedagogia do oprimido. 54 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2013.

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